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A menina distraída

A menina sempre caminhava por aquele bairro. Resolveu dar uma voltinha além dali. Viu que podia ver outros bairros e visitar outros lugares e foi caminhando, cada dia indo um pouco mais distante.


Ia e voltava sentindo-se cada dia mais segura em sua caminhada, pois os bairros por onde passava eram tranquilos, seguros, cheios de flores, com gente alegre, sem sujeira ou destruição.


Via animais, via árvores bonitas e cada vez mais se afastava de sua casa e voltava sem problemas, acreditando que estava ampliando seus horizontes, que assim estava conhecendo mais o mundo. Conversava com outras meninas e outros meninos, brincavam alegremente, sentia prazer, suava, subia morros e descia na areia branca.


Outro dia a menina foi mais adiante e viu o mar. O mar surpreendeu-a e lhe deu vontade de avançar um pouco mais. Molhou seus pés, caminhou pela areia, catou conchinhas, teve nojo das algas e correu com medo dos cachorros que, soltos, também brincavam na praia.


Ela sempre voltava para sua casa e deitava-se cansada, lembrando com prazer das coisas boas que vivera, soltando-se e indo além de seu mundinho já conhecido.


Um dia, em uma de suas caminhadas, a menina não percebeu que havia um grande buraco entre folhas, num bosque onde sempre caminhara. Caiu e imediatamente gritou pedindo socorro. Mas o buraco era fundo, ninguém podia ouvi-la. Ela estava muito machucada pela queda. Doía-lhe todo o corpo e aos poucos até sua voz começou a ficar curta.


Ela passou algum tempo calada, um dia, talvez, e viu que algumas coisas caíam sobre ela. Entulhos? Tentou gritar, mas conseguiu apenas gemer.


Muitos objetos caíam. Galhos, sacos plásticos, garrafas vazias, restos de alimentos, lixo, muito lixo. Quanto mais a menina gemia, mais lixo aparecia naquele buraco. E quanto mais lixo aparecia no buraco, mais ela se via sem condições de sair dele.


Resolveu calar-se, parar de gemer. Talvez sem mostrar que lá havia um buraco, sem chamar atenção para sua existência, parassem de colocar lixo dentro dele. Assim fez. Cessou seus gemidos. Fez silêncio.


Lentamente os objetos foram deixando de cair sobre o buraco e a menina foi conseguindo remover os que já haviam sido lançados sobre ela. Pouco a pouco, num esforço pessoal imenso, a menina resolveu cantar.


Seu canto foi ouvido da rua, sua música ultrapassou a floresta e foi ouvida por todo o bairro. Sua voz foi reconhecida e lembrada por seus amigos e pelos animais que ela diariamente afagava quando passeava pela calçada.


Aos poucos, cada um deles foi sendo atraído pelo seu canto, pela alegria de sua voz e foram chegando perto do buraco onde ela estava. Viram que ainda existia algum lixo sobre ela. Ajudaram-na a removê-lo e jogaram uma corda muito grande. Fizeram várias e várias tentativas, sempre pedindo que não parasse de cantar. E todos, num esforço coletivo, puxaram a corda e assim conseguiram resgatar a menina. Tiraram-na para fora do buraco, deixando para trás todo o lixo que havia sido jogado.


Ela saiu ainda muito suja, muito dolorida e machucada, mas estava feliz porque havia conseguido salvar-se. O tempo lhe fez esquecer todo aquele terror que vivera enquanto esteve dentro do buraco, mas certamente ainda lembrava daqueles que, movidos pelo seu canto, lhe jogaram a corda e lhe puxaram para que pudesse sair e voltar a ter a vida que desejava.


Passou a ficar mais atenta aos caminhos por onde andava, a perceber mais o que acontecia a sua volta, passou a reparar seu próprio canto, sua música e seus amigos. Passou a gostar de caminhar mais devagar, olhando sem pressa o chão, a grama, seus próprios passos. Enxergou outros passos além dos seus e viu que alguns a levavam a lugares lindos, outros nem tanto. Assim, foi se sentindo mais leve, mais em paz, tendo muitos momentos felizes.


A menina, que era tão distraída, precisou um dia cair num grande buraco, sentir muito medo de ficar naquele lugar sujo e temeroso, ser salva por si mesma e por seus amigos, para que, a partir daí, passasse a olhar com atenção por onde andava, vigiasse seus passos e entendesse que existem buracos camuflados em lugares que são inimagináveis. Com cuidado e sabedoria é sempre possível contorná-los.


Escrito em 21/03/2016




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